Desejos não atendidos

Desejos não atendidos
por Marco Goulart

Existe aquela frase popular de que no “coração de mãe sempre cabe mais um”. E quem não gosta da comida da mãe, das roupas lavadas, do carinho, do acolhimento. Mãe é tudo de bom!

E se você pudesse participar da promoção “coração de mãe”? Que tal? Parece uma boa idéia? Todos os dias somos bombardeados por incentivos para consumir. Vivemos nos tempos do neuromarketing.

Alguma vez você já se pegou imaginando: “ah se eu tivesse um super poder de descobrir os pensamentos daquela pessoa…”. Acredito que este poder verdadeiro pertence a Deus, mas cada vez mais o homem tenta decifrar os sinais do nosso cérebro.

Muitas pesquisas são feitas com objetivo de aprimorar tratamentos médicos, psiquiátricos e psicológicos. Também existem pesquisas em publicidade com objetivo de lançar campanhas realmente importantes, como as que promovem a redução no consumo de cigarros, e prezam pela segurança nas estradas. Mas muito é feito com o objetivo de aumentar nosso consumo, ou como o pessoal do marketing gosta de dizer: atender as nossas “necessidades desconhecidas”.

Mas o que é o marketing? Para responder essa pergunta vamos conhecer Philip Kotler. O Dr. Kotler é professor na University Kellogg Graduate School of Management em Chicago, Estados Unidos. É considerado um dos principais autores mundiais sobre o assunto. De acordo com o seu website (kotlermarketing.com):

“Marketing é a ciência e arte de explorar, criar e entregar valor para satisfazer necessidades de um mercado alvo. Marketing identifica necessidades e desejos não atendidos.” (tradução minha)

Acho muito interessante este texto do Dr. Kotler pois nos faz pensar sobre as diferenças entre necessidades e desejos. Sem entrar nessa discussão, percebemos que o objetivo do marketing é identificar também nossos desejos não atendidos.

O Dr. Kotler vai além, e diz:

“O marketing começou com os primeiros seres humanos. Usando a primeira história da Bíblia como exemplo, vemos Eva convencendo Adão a comer a maça (apple) proibida. Mas Eva não foi a primeira marqueteira. Foi a cobra quem convenceu Eva a fazer a oferta para Adão.” (tradução minha).

O que me chamou a atenção foi a compreensão do Dr. Kotler sobre o potencial uso negativo do marketing. Todos nós sabemos como a oferta feita pela serpente foi mentirosa e prejudicial, iludiu Eva e Adão, que acreditaram na “propaganda enganosa” da serpente e desobedeceram ao que Deus havia pedido (vale lembrar que a Bíblia não fala de uma maça, mas de um fruto: a árvore do conhecimento do bem e do mal, ou a árvore do conhecimento)

Quantas vezes nós já nos propusemos a controlar nossas finanças, ou comer menos frituras tipo nuggets, mas aí nos deparamos com aquela oferta maravilhosa tipo “coração de mãe”, ou aquele “nuggets light”? Ouvindo as vozes das propagandas que nos induzem a consumir e cedemos aos nossos desejos, e logo percebemos que fizemos algo errado, que na verdade não nos trouxe qualquer benefício. Enganamos a nós mesmos, nos sentimos enganados, e perdemos todo o ânimo que tínhamos para aquele controle financeiro e aquela dieta.

Talvez Adão e Eva também tenham passado por isso. Perceberam o que haviam feito e desistiram de realizar algo melhor, que fosse bom, passaram a agir conforme seus próprios desejos, sem um propósito maior, sem ânimo. Parece que essa história é mais atual do que imaginamos…

O marketing em si não é negativo, minha intenção não é desrespeitar os profissionais que atuam nesta área. Mas não podemos nos esquecer que um dos objetivos da publicidade e do marketing é atender nossos desejos. Este é um assunto muito delicado, pois precisamos refletir honestamente sobre nossos desejos.

Posso lhe dizer, por exemplo, que as vezes eu desejo ofender uma pessoa, as vezes desejo fazer o mal, podemos desejar até mesmo a infidelidade. Se realizarmos todos nossos desejos podemos estar fazendo algo muito prejudicial para aqueles a quem amamos. Não é difícil perceber isso em nossos relacionamentos. E quanta publicidade e propaganda existe colocando a infidelidade como algo bom, desejável, ou omitindo as consequências da infidelidade?

Não é diferente com o consumo: as vezes desejo trocar de carro, as vezes desejo comprar uma roupa nova, as vezes desejo comprar aquela nova televisão de alta definição, as vezes desejo fazer aquela viagem dos sonhos. Precisamos refletir se aquilo é um desejo ou uma necessidade, e principalmente, refletir sobre as consequências. Mas somos bombardeados todos os dias para que coloquemos nossos desejos a frente de nossas necessidades, para que nossas decisões sejam instantâneas e com pouca reflexão.

Talvez seja uma necessidade comprar uma roupa nova, mas vamos ver quantas roupas temos em nossos armários. Vamos ver aquelas que não estamos usando, que podemos doar. Encontramos alguma roupa que compramos e não usamos? Então essa é uma boa pista de que talvez essa não seja uma necessidade, e de que precisamos parar para pensar. Se realizamos nossos desejos, é muito provável que não estejamos fazendo o que nos é necessário: “comprei uma roupa (realizei meu desejo), mas continuo devendo no cartão de crédito (não realizei uma necessidade que era diminuir minha dívida) ”.

Vamos colocar de outra forma. Imagine por um momento um campo de batalha como naqueles filmes da idade média. De um lado vemos um exército muito bem armado, com arcos, flechas, cavalos, espadas, escudos, e tudo o mais. Do outro lado estamos nós, com roupas simples e um punhado de pedras. Entre nós e o outro exército está um vasto campo. A batalha começa e o exército equipado começa a correr em nossa direção gritando ferozmente. O que nós fazemos? Caminhamos e pulamos alegremente em direção ao exército, e nem sequer levamos nossas pedras…

Esta é a nossa batalha como consumidores, é uma batalha desigual. Em algum momento você já recebeu um treinamento, ou assistiu uma aula, sobre como ser um consumidor nos tempos modernos? Pois muitas vezes, “do outro lado do balcão” (ou da televisão), existem profissionais altamente treinados para fazer uma venda, cheios de argumentos para fazer nós decidirmos sem pensar, para comprarmos mais. Pulamos de alegria ao entrar nos shoppings para “olhar” as lojas, e nem sequer percebemos que estamos em um campo de batalha.

Ok… talvez minha dramatização tenha sido um pouco drástica. Mas vamos parar para refletir um pouco. Quando foi a última vez que entramos no shopping ou em uma loja e consumimos algo que não havíamos sequer pensado em consumir?

A boa notícia é que não precisamos de arco e flecha, mas de informação e atitude, e isso está disponível hoje mesmo para todos nós. Precisamos obter informação de melhor qualidade e decidir a quem vamos ouvir.

O arsenal usado para atendermos somente nossos desejos é vasto. Vou descrever abaixo algumas estratégias e armas deste exército que está do outro lado do campo de batalha:

Aromas: Estimulam associações positivas e a sensação de bem-estar. Em carros esportivos é comum o uso de aromas de borracha, e nos de luxo, aroma de couro. Pesquisas apontam que perfumar o ambiente aumenta em até 15% a probabilidade de uma venda. Aos nos sentirmos bem, positivos, relaxamos e acabamos cedendo a algum desejo ou uma compra por impulso.

Música: altera nossa percepção em relação a passagem do tempo. Com isso permanecemos mais tempo dentro das lojas olhando produtos, o que aumenta as chances de realizarmos nossos desejos.

Iluminação e relógio: a ausência de iluminação natural e de relógio também alteram nossa percepção sobre a passagem do tempo. Por isso é comum passarmos muito mais tempo do que planejávamos no shopping center.

Oxigenação: É o aumento da proporção de oxigênio no ambiente, literalmente soltar oxigênio na loja. Isso provoca bem-estar e leve euforia, duas sensações associadas à compra por impulso.

Disposição dos produtos: Até mesmo a disposição dos produtos pode influenciar nossa decisão. Pesquisas mostram que a disposição de produtos mais caros a direita da entrada das lojas aumenta a probabilidade de consumo.

Experimentação: Ao experimentarmos produtos aumentamos em 30% as chances de consumirmos aquele produto. Em lojas de roupas a iluminação a indireta, assim enxergamos menos os detalhes e nosso corpo e ficamos mais “satisfeitos” com a roupa. Provadores de roupas maiores fazem com que fiquemos mais à vontade, assim experimentamos mais roupas e aumentamos as chances de consumir algo.

Preço: O formato curto do preço faz parecer que o valor é menor. A forma “34” é melhor que “34 reais”. Se as letras forem pequenas, o preço parecerá ainda menor. É melhor cobrar 1,99 do que 2 reais. Como se lê da esquerda para a direita, é justamente o primeiro número que mais se fixa à mente.

Essa lista é longa e existem livros inteiros sobre como estimular o consumo em todo o tipo de ambiente: shopping, supermercado, na rua, na sua casa, na internet e na televisão. O profissional de vendas diria: “Ok, então vamos montar uma loja com iluminação ruim, sem ar condicionado, com vendedores mal treinados, e assim não estaremos induzindo o consumo”. É um bom ponto, deixo com o leitor a análise do equilíbrio na relação “vendedor e consumidor”.

Mas esta batalha não acontece somente no “corpo a corpo”, cada vez mais ela é virtual. As propagandas são direcionadas para públicos alvo de acordo com o filme ou seriado que assistimos na TV ou em serviços como netflix. Sobre este assunto gostaria de propor outra ilustração (use sua imaginação):

Imagine que você está na sua casa, é uma manhã de domingo e a sua campainha toca. Você levanta do seu sofá e vai até a porta. Para sua surpresa lá está uma pessoa bonita e bem vestida, mas que você não conhece. A pessoa fala o próprio nome e nada mais, e você abre a porta e deixa esta pessoa entrar. Vocês se dirigem até o sofá e então essa pessoa começa a lhe oferecer produtos. Em nenhum momento ela lhe pergunta algo, de forma que somente ela continua falando. Vocês passam a manhã juntos, almoçam juntos, passam a tarde juntos, e todo esse tempo essa pessoa ficou lhe oferecendo produtos e serviços, de forma repetida, em nenhum momento ela lhe ouviu ou perguntou algo para você… só ela falou, mas curiosamente parece que ela sabe alguns detalhes sobre a sua vida.

Responda honestamente, em quanto tempo você mandaria esta pessoa embora de sua casa? Talvez sequer permitiríamos que ela entrasse… Todos os dias, quando ligamos a televisão, estamos convidando essa pessoa para passar o dia com a gente. Mas não é qualquer pessoa, é uma pessoa muito bem treinada, persuasiva, e que muitas vezes nos “entretêm” para poder nos atingir com um humor melhor.

Na internet não é diferente. Quantos e-mails recebemos todos os dias com “ofertas imperdíveis” daquele produto que pesquisamos uma única vez no google? E aqueles anúncios que aparecem ao lado do navegador? Se pesquisamos “geladeira” então vamos ver “geladeira” por meses no nosso navegador.

Você pode dizer: “Marco, você está exagerando… Além do mais eu sou uma pessoa inteligente, não caio em qualquer promoção…”. Então olhe para a figura abaixo e responda, qual é a linha maior:

Se você respondeu a linha debaixo então você está certo(a), mas você está errado(a). Está certo porque a linha debaixo realmente parece maior, mas está errado porque ela não é maior. As duas linhas têm o mesmo tamanho. Mesmo quem já conhece a figura é iludido. Racionalmente sabemos que as duas linhas têm o mesmo tamanho, mas intuitivamente acreditamos que a linha de cima é menor. Isso acontece devido a ilusão do ponto de referência. As setas ao final das linhas dão a impressão de que elas possuem tamanhos diferentes.

O que quero dizer é que não existe a possibilidade de não sermos iludidos. Toda vez que vemos a promoção tipo “coração de mãe” pensamos no coração de mãe. O que existe é a atitude de, mesmo iludido, não agir por impulso.

O neuroeconomista Brian Knutson, da Stanford University nos Estados Unidos, mostrou em suas pesquisas que a área do cérebro mais ativada quando temos a expectativa de receber um bem tangível (como a expectativa de comprar um produto ou ter um ganho financeiro) é a mesma área que é ativada quando existe a expectativa de receber uma dose de uma droga ilícita. É uma área impulsiva, que não sofre controle racional.

Em outras palavras, a expectativa de consumo é algo muito forte, inconsciente, e que pode causar reações fisiológicas (alteração na pressão, suor, etc.). Essas reações são diferentes no caso da droga ilícita, quando ocorrem em proporção muito maior, mas o interessante é que acontecem na mesma região do cérebro.

Diante deste cenário, uma estratégia muito importante é não consumir. Simples assim: não compre! Vá para casa e reflita por um dia. Embora simples, é difícil, por isso precisamos treinar para conseguir fazer isso. Mas quanto treinamento recebemos nesse sentido?

Outra opção é não nos expormos a ilusão, evitar a exposição é uma ótima técnica: se tenho um problema com cigarros, não vou frequentar um ambiente em que todos estão fumando.

Recentemente minha esposa e eu decidimos comprar um produto daqueles que é difícil comprar pela internet. Após uma boa pesquisa na internet definimos alguns critérios do que estávamos procurando e iniciamos visitas em algumas lojas. Em uma manhã visitamos três lojas e testamos marcas diferentes. Definimos a marca que gostaríamos de comprar e voltamos na loja para obter mais detalhes. Neste momento sentamos com a vendedora e ela começou a questionar sobre nossos interesses, preferências, faixas de preços que procurávamos. Foi uma boa abordagem da vendedora, se mostrou interessada.

Quando chegamos na discussão de preços saquei a minha calculadora financeira e comecei a fazer contas sobre as opções a prazo que ela estava oferecendo. Ela ofereceu algum desconto e começou a insistir: “Marco, o que impede vocês de fecharem esse negócio hoje?!?” Neste momento minha esposa e eu nos olhamos e eu falei: “Não existe a menor possibilidade de nós comprarmos este produto hoje”. Conversamos mais um pouco com a vendedora e saímos da loja, então minha esposa comentou brincando “quase falei para a vendedora: moça, você não está entendendo, é o meu marido, ele não vai comprar nada hoje.”

Ainda hoje minha esposa e eu nos divertimos com a situação. Brincadeiras a parte, a regra é essa: para compras mais relevantes ou que podem afetar seu orçamento, não compre nada no dia! Deixe para o dia seguinte, vá para casa pensar, refletir sobre suas reais necessidades. Faça anotações do que você precisa, reveja suas anotações.

Estratégias de consumo como “fazer listas”, “reduzir exposição” e “não comprar, pensar” são muito boas para lidarmos com o bombardeio das ofertas. Mas também precisamos olhar para dentro, afinal de contas são os nossos desejos, e muitas vezes inseguranças que interferem na disciplina.

Fazemos muitas compras sem sentido, para nos sentirmos melhor em relação as outras pessoas. Não é algo que acontece somente nas classes mais altas. Os desejos sempre existem e se adaptam as nossas condições como consumidores. Uma pessoa de alto poder aquisitivo pode desejar comprar uma BMW e com isso comprometer seu orçamento. Uma pessoa com um poder aquisitivo menor pode desejar comprar um tênis da moda e também comprometer seu orçamento.

Essa é a justiça da vida no mundo, ricos e pobres são igualmente tentados pelos seus próprios desejos, inseguranças e cobiças. Provavelmente, se pensarmos mais em como servir aos outros, do que como atender nossos desejos, vamos utilizar de forma mais equilibrada os recursos que estão a nossa disposição. Fazer as coisas dentro de um bom propósito será mais útil do que fazer por status. Como um autor desconhecido bem colocou, STATUS é:

comprar aquilo que você não quer
com o dinheiro que você não tem
para mostrar a uma pessoa que você não conhece
aquilo que você não é.
(autor desconhecido)

Espero que este conjunto de três textos: dinheiro; crédito e consumo, tenha permitido uma reflexão sobre nossos hábitos e atitudes. Vimos que, em última instância, estamos tratando de nossas vidas. É um assunto maior do que “dinheiro”, como estamos acostumados a pensar. Conhecer o ambiente em que vivemos é um primeiro passo para mudarmos nosso caminho. Isto é válido para todos, independentemente de classe social ou conhecimento intelectual.

2 respostas

  1. Excelente professor, gostei muito. As estratégias de marketing são estudadas com equipamentos altamente sofisticados, com equipes multidisciplinares, incluindo médicos, engenheiros, psicólogos, profissionais de marketing, matemáticos, etc… Tudo para descobrir quais são os focos que atraem mais o consumidor desapercebido de que está sendo observado todo o tempo.

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